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A ambiguidade misteriosa de Julian Eltinge, "o homem atriz"



Imaginem um homem, astro de cinema, que interpretou apenas papéis femininos em sua carreira, e sendo muito bem pago por isto? Pois aconteceu, ele chamava-se Julian Eltinge, e foi um dos artistas mais bem pagos de Hollywood, no começo do século XX.

Julian não fazia o travesti, era o próprio travesti, aplaudido, famoso e rico. Um artista de primeira grandeza. Mesmo nos dias de hoje, é impensável que algum artista do estilo de Julian Eltinge repita o sucesso deste ator dos primórdios do cinema mudo. Conhecido como "o homem atriz", por sempre se apresentar em trajes femininos, foi um dos pioneiros dos primeiros tempos da Paramount, e era um dos artistas mais bem pagos dos Estados Unidos.

Ele é considerado uma das primeiras Drag Queens da indústria do entretenimento.

E o público o adorava!

 Anúncio no Correio da Manhã, de 11 de setembro de 1918 

Desde os tempos do surgimento do teatro,  travestir atores sempre foi uma prática comum, mas geralmente com objetivos cômicos, onde um ator se disfarçava de mulher para aplicar um golpe ou fugir da polícia. No cinema, vários foram os atores que se utilizaram deste recurso para fazer o público rir, de Pernalonga Oscarito. E como esquecer a dupla Jack Lemmon e Tony Curtis no clássico Quando Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959)? Mas Julian Eltinge não fazia filmes para rir, e sim interpretava a mocinha, protagonista de seus filmes.

Eltinge não foi o primeiro a aparecer travestido durante todo o filme. Em 1914, por exemplo, Wallace Berry, conhecido galã viril de Hollywood (na época, casado com Gloria Swanson) fez uma série de filmes pelo estúdio Essanay, onde interpretava a criada Swedie, por exemplo. Sidney Chaplin, irmão de Charles Chaplin, também fez diversos trabalhos onde interpretava personagens femininos durante todo o longa-metragem.

Sweedie e Wallace Berry, sem caracterização

Julian Eltinge era o nome artístico de William Julian Dalton, nascido em Massachusetts, em 14 de maio de 1881. Muito pequeno, incentivado pela mãe, ele já começou a se vestir de mulher e brincar com os trejeitos femininos, para desespero de seu pai, que não concordava com aquilo, e reprimia violentamente o menino.

Para conter a brincadeira do filho, seu pai matriculou em um internato militar.

Julian Eltinge

A primeira vez que Eltinge subiu em um palco vestido de mulher, entretanto, foi justamente quando estava no internato. Ele tinha dez anos de idade, quando apareceu travestido na produção escolar Boston Cadets Revue. Na época o colégio de cadetes só possuía alunos do sexo masculino, e era comum os meninos interpretarem papéis femininos nas produções escolares, porém seu desempenho como imitador do "belo sexo" se diferenciava dos outros alunos, e acabou chamando a atenção dos produtores teatrais, que começaram a contratá-lo para apresentações, incialmente em lugares menores como cafés e lojas de departamentos, e posteriormente para os palcos do vaudeville. Em 1904, Julian fez sua estreia na Broadway. O sucesso de seus números, o levou para uma série de bem sucedidas apresentações na Europa, onde inclusive cantou para o Rei Eduardo VII, da Inglaterra, em 1906.

Ele também virou uma referência de elegância e moda feminina, tendo seus modelitos copiados por diversas mulheres, tamanha era sua popularidade. Eltinge também escrevia colunas para os jornais com dicas de maquiagem, penteados e afazeres e prendas domésticas.


A partir de 1910 ele começou a estrelar diversos espetáculos escritos especificamente para ele, o primeiro deles foi The Fascinating Widow (1910), e lhe valeu comparações com a atriz Lillian Russell, uma das mais populares estrelas dos palcos norte-americanos da época. Considerado por muitos como uma das primeiras Drag Queens, Eltinge era um grande astro, e ainda na década de 1910 chegou a receber a fortuna de 250 mil dólares como cachê por uma única apresentação, para um milionário do Oriente Médio. Na época, nem os maiores astros de Hollywood recebiam vultosa quantia.



Em 1914 ele estrelou seu primeiro filme, A Pequena de Crinolina (Crinoline Girl, 1914). No mesmo ano, também estrelou A Prima Lucy (Cousin Lucy, 1914), ambos foram sucessos de bilheteria, inclusive nos cinemas brasileiros. No ano seguinte, fez uma participação especial em How Molly Made Good (1915).




Os dois filmes iniciais de Eltinge eram curta-metragens. Após esta experiência, ele retornou aos palcos, voltando a atuar em frente as câmeras apenas três anos depois, no longa metragem A Tentadora Condessa (The Countess Charming, 1917). Até 1920 ele faria mais sete filmes, sempre vestido de mulher (embora em algumas produções também interpretasse seu interesse romântico masculino).

Em 19 de setembro de 1918, a revista brasileira Palcos e Telas comentou o filme A Tentadora Condessa: "O valor do film reside na originalidade do trabalho de Julian Eltinge, actor de bello porte e sympathicas feições que se transforma em creatura do sexo opposto, com tanta graça que se chega a preferil-o pelo encanto que irradia, nessa nova encarnação". (A grafia original do texto foi mantida na transcrição). No ano seguinte, uma enquete junto ao público brasileiro, feita na mesma publicação, Eltinge ficou entre os artistas preferidos dos brasileiros, superando astros como Sessue Hayakawa e Charles Chaplin.


O sucesso cinematográfico era tanto, que em 1920 ele foi co-astro de Rudolph Valentino em A Ilha dos Amores (An Adventuress, 1920). Nos Estados Unidos, o filme também foi chamado de The Island of Love, embora o nome oficial, em inglês, seja An Adventuress. O elenco da produção ainda tinha a atriz Virgina Rappe, morta em 1921 durante uma festa com o comediante Fatty Arbuckle, fato que se tornou um dos primeiros grandes escândalos de Hollywood. Já contamos este caso aqui.

Em 1920 ele era um dos artistas mais bem pagos de Hollywood, e morava em uma luxuosa mansão na Villa Capistrano, no sul da Califórnia. A edificação ainda existe atualmente.

Mas apesar do sucesso no cinema, ele preferiu dedicar-se aos palcos nos anos seguintes, montando sua própria companhia teatral e posteriormente fundando seu próprio teatro.

A mansão de Julian Eltinge

Eltinge retornou ao cinema em Madame Charleston (Madame Behave, 1925). No mesmo ano estrelou O Poder da Viúva (The Fascinanting Widow, 1925), baseado em um dos seus maiores sucessos teatrais.

Em 1925 ele também foi referenciado no filme Sete Chances (Seven Chances, 1925), uma comédia estrelada pelo astro Buster Keaton. No filme Keaton tem 19 horas para se casar como condição para poder receber uma grande herança. Desesperado para encontrar uma noiva, ele vê um pôster com uma foto de uma bela mulher do lado de fora de uma sala de espetáculos, e entra no prédio para pedi-la em casamento. Enquanto Keaton está dentro do prédio, um empregado retira umas caixas que obstruíam parte do cartaz, revelando ser a estrela Julian Eltinge a moça do cartaz. Em seguida, Keaton deixa o teatro com um olho roxo e o chapéu rasgado.


E embora sempre personificasse mulheres em sua carreira, Eltinge afirmava categoricamente não ser gay. Sua vida pessoal é envolta de mistérios, mas ele constantemente era visto fazendo coisas para reafirmar sua masculinidade. O ator fumava charutos, frequentava lutas de boxe, vestia-se com roupas masculinas em seu dia a dia, e constantemente era visto arrumando brigas, algumas aparentemente armadas, para reforçar sua heterossexualidade.

Não era incomum também durante um espetáculo ele agredir algum espectador que fizesse algum comentário que ele não gostasse.




De uma feminilidade graciosa nos palcos, Eltinge demonstrava uma fachada super masculina em sua vida pessoal. Antes de embarcar para uma turnê no Japão, apresentou aos jornalistas a atriz Laurette Bullivant Frye como sendo sua esposa. Mas na verdade, ele nunca se casou, e nunca foi visto em público trocando carícias com ninguém, independete do sexo.  De fato, sua dualidade sexual levou ao surgimento do termo "ambisextro", criado para descrevê-lo pela dramaturga e roteirista Dorothy Parker (com quem ele trabalhou no teatro).

Julian Eltinge e Laurette Bullivant Frye


Milton Berle, com quem ele trabalhou, afirmava que Eltinge era gay. Já Ruth Gordon, que também foi sua colega, declarou que ele era um dos homens mais viris que ela conheceu. O jornalista Roberto Roll, no livro On With the Show! (1976), deu a entender que teve um relacionamento com Eltinge, o que causou atritos em seu casamento.

No final da década de 1920 sua carreira entrou em declínio. Em 1927 a revista brasileira Cinearte, especializada em cinema, escreveu: "Há muito que não via Julian Eltinge, o melhor imitador dos bello sexo, já que não apparecem outros. Está mais gordo... e velho." (Cinearte, 23 de março de 1927).

Seu teatro foi fechado por uma comissão da Moral e dos Bons Costumes, e o ator perdeu praticamente todo seu dinheiro com a Quebra da Bolsa de Valores de 1929.


Ao mesmo tempo, os espetáculos com imitações femininas deixaram de ser popular com o público, e a partir da década de 1930, já beirando os cinquenta anos de idade, ele não apresentava mais o fascínio de antes. Acima do peso, e envelhecido, suas personificações femininas já não encantavam tanto como outrora.


Antes estrela, agora o artista apresentava-se em boates menores, de fama um tanto duvidosas, para pagar as contas. Mesmo assim, em 1929, ele retornou ao cinema, agora falado, no documental The Voice of Hollywood (1929).


Gilberto Souto, que havia sido correspondente estrangeiro da Revista Cinearte, anos mais tarde, em um depoimento ao jornal carioca Correio da Manhã (em 30 de outubro de 1960) comentaria: "Anos mais tarde quando vivi em Hollywood, certa vez, alguém apontou-me Julian Eltinge, de quem eu vagamente me lembrava. Estava velho, balofo e acabado. Disseram-me, entretanto, que tinha dinheiro e não vivia apertado. Para mim foi sempre um mistério como o cinema, naquela época, mais puritano, e ainda não contagiado pelo sopro de Tennesse Williams, apresentava um ator em travesti, mesmo para feito de comédia. Hoje, jamais teríamos um imitador do belo sexo, ali no duro mesmo, astro ou estrela de um filme."

Com a chegada do Código Hays, um manual de conduta em defesa da "moral e bons costumes" nas artes norte americanas, em 1931, os shows de transformistas foram proibidos. Julian Eltinge então passou a se apresentar no palco com roupas masculinas, ao lado de manequins que exibiam seus antigos figurinos, e ele contava suas lembranças para a plateia, descrevendo seus antigos personagens.

Em 1940, já bastante ofuscado na mídia, ele apareceu em seu último filme, Se Eu Fosse Feliz (If i Had My Way, 1940), uma produção da Universal, estrelada por Gloria Jean e Bing Crosby. Ele não tinha um número musical, como informam erroneamente algumas fontes, apenas faz uma pequena ponta de alguns segundos, como ele mesmo (em trajes masculinos), sentando em uma mesa de restaurante ao lado da veterana atriz e sufragista Trixie Friganza (antiga estrela do vaudeville), em uma cena de poucos segundos.


Em 25 de fevereiro de 1941, Julian Eltinge passou mal enquanto se apresentava na boate Diamond Horseshoe, de Billy Rose. Ele interrompeu as apresentações, e foi para casa se cuidar. Porém, em 07 de março de 1941, foi encontrado morto em seu apartamento. Seu atestado de óbito declarou que ele sofreu uma hemorragia cerebral, embora alguns amigos próximos afirmem que Julian Eltinge tenha cometido suicídio, aos 59 anos de idade.


Montagem promocional da época, mostrando Julian Eltinge e algumas de suas mais famosas criações


Existem alguns livros onde é possível conhecer mais sobre Julian Eltinge (em inglês), eles podem ser adquiridos nos links da Amazon abaixo:

Biografia de Julian Eltinge: https://amzn.to/3793eLP

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